Júlio César chorou antes dos pênaltis. Foi lá e defendeu duas bolas e ainda contou com a sorte na última batida na trave. Nós, torcedores, choramos angustiados e desesperados gritando seu nome no final, esquecendo tudo que aconteceu quatro anos atrás.
Goleiros são assim, algo fora do comum. Estão além do tempo e do espaço de uma partida de futebol. Eles tem uma percepção a mais do jogo e da bola, algo extra sensorial que corre pelo seu sangue.
Salvadores ou traidores, não existe meio termo para eles. A angústia ocupa todo o teto dos estádios sobre suas cabeças. Poucos personagens de um jogo sustentam tanta responsabilidade sobre seus ombros.
Separados do seu time na sua área reservada eles tem muito mais probabilidade de enlouquecer e sentir medo.
E sabem que por mais que defendam, podem falhar a qualquer momento. Por isso mais do que outros jogadores eles cultivam suas manias. Abraçam as traves, beijam seus amuletos, ajoelham, falam sozinhos, olham para um ponto perdido no nada.
Goleiros tem uma obsessão com as bolas. São os únicos que podem tocá-las de todas formas, com as mãos, braços, pernas, barriga, canela. Carinhosamente, com raiva, com desespero. E nem quando as agarram com força sentem que podem se sentir seguros de que as tem sobre seu controle.
Mais do que outros sabem que são humanos, mortais, efêmeros. Goleiros morrem um pouco a cada jogo e mal sabem disso. É o personagem mais próximo da torcida, encarnado dentro do estádio, sob a grama, assistindo a tudo sem fazer nada a ponto de decidir tudo.
Goleiros estão lá sozinhos durante todo o jogo. Com todo o medo do ódio, das vaias, da derrota, de um futuro que pode acontecer e definir uma partida em questão de segundos.
De alguma forma sabem que não tem nada a perder, por isso mais do que os outros podem viver momentos épicos, mesmo que em apenas um lance ou somente uma partida, em jogadas impossíveis, defesas inexplicáveis, deles, da bola, da sorte, do inesperado. Goleiros são suicidas que continuam vivos.
Ninguém esquece da falha de um goleiro, todas as bolas antes defendidas e salvas desaparecem.
Por isso os goleiros não deixam de lembrar nenhum lance. Dormirão e sonharão por toda a sua vida continuamente revivendo todas as bolas e redes e desafios de sua carreira. Por isso eles choram, acordados ou sonhando, de alegria e dor, de êxtase e desespero, porque tem de alguma forma a essência da vida nas mãos.
Júlio César chorou porque já sabia de tudo o que ia acontecer. Goleiros sempre veem algo a mais, além de tudo, além de todos nós, por isso podem e devem chorar mais do que nós, pobres mortais.
(este texto é uma homenagem a todos os grandes goleiros do Brasil, principalmente Barbosa, que estava lá em 1950).